Fermentação positiva

Atrai atenção de produtores no Brasil. Sua implementação demanda alterações no manejo.

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02/02/2019
Publicado em

O vinho inspirou muitos escritores e poetas. Há anos, o business relacionado à bebida e sua valorização no mercado consumidor é uma fonte de inspiração para a cadeia DE café. Veio daí a adoção da Denominação de Origem, já adotada, por exemplo, na região do Cerrado Mineiro e em vias de ser em outras regiões produtoras do País. Mais recentemente, a fermentação, fundamental na produção do vinho, vem ganhando mais e mais espaço nas discussões entre cafeicultores. Muitos dos quais interessados em conhecer mais sobre a fermentação controlada ou processamento de via úmida do grão. Hoje, o Brasil adota majoritariamente a via seca.

A fermentação controlada ou positiva está chamando a atenção porque ela vem sendo vista como uma ferramenta para amplificar características sensoriais do grão, destacando as especificidades dos lotes. Em muitos casos, esse processo aumenta a pontuação dos cafés no cupping. Contudo, sua utilização tem diversos pré-requisitos.

O produtor do Cerrado Mineiro, Gabriel Nunes, que trabalha há cinco anos com fermentação na sua fazenda, a Nunes Coffee, explica que esse é um método que se usa para aumentar os compostos voláteis – aroma e sabor – do café. “O processo realça características como doçura e acidez que os grãos do lote processado têm”. Contudo, ele avisa que a adoção da fermentação exige um grande controle do processo por parte do produtor, do contrário pode ser prejudicial e resultar numa piora das características do grão.

Por isso, a primeira medida a ser tomada por um produtor interessado em fazer a fermentação positiva é conhecer bem o café que ele produz, a fim de identificar o potencial produtivo da fazenda. Esse mapeamento é físico e resultará na identificação das características de cada talhão. “É importante fazer isso por anos para ter um conhecimento profundo do café produzido e dos potenciais existentes nele”, destaca o produtor mineiro.

Hoje, nos 400 hectares cultivados na Nunes Coffee, metade da produção, de 12 mil a 15 mil sacas/ano, se caracteriza por cafés especiais. O objetivo é chegar a 80% da produção. No caso do volume do grão fermentado, 20% da produção é submetida a esse processo. A ideia é também elevar esse volume.

A adoção da via úmida veio com o objetivo de focar todo o trabalho na produção de cafés especiais voltados ao mercado interno e externo. “Queríamos sair fora da commodity e a fermentação faz parte desse caminho”, ressalta. A adoção dessa prática, contudo, apresentou algumas demandas. Foram feitas melhorias na infraestrutura, com a construção de três tanques de fermentação com investimento de R$ 45 mil. Outro aspecto importante destacado por Nunes foi a necessidade de capacitar os funcionários para trabalharem com o novo procedimento adotado na fazenda. “Nosso maior desafio foi o operacional. Houve aumento da demanda de funcionários porque há mais processos, por isso é necessário mais gente. E é preciso fazer a formação dessa mão-de-obra”.

No que se refere ao tipo de levedura usada, a opção na Nunes Coffee foi pela fermentação natural, que se vale das leveduras presentes na própria planta. O mercado oferece a possibilidade de comprar leveduras, a exemplo do que se faz com o vinho, e algumas são as mesmas usadas pelas vinícolas. O produtor avisa que fermentar não é a única parte desse processo. “É preciso observar todo o processo de secagem”, avisa.

O especialista em cafés, Luiz Roberto Saldanha Rodrigues, diretor da Capricornio Coffees, faz uma observação importante em relação a todo esse processo voltado a ressaltar as características positivas do café produzido. “É preciso que fique claro que não se pode fazer um vinho de alta qualidade com a utilização de uvas de baixa qualidade. Na produção de cafés não é diferente. Técnicas de processamento não podem corrigir falhas oriundas do processo produtivo”.

A produção do café precisa ser entendida como um todo, da escolha da variedade, passando, entre outros, pelos tratos culturais, colheita, processamento – via seca ou úmida – secagem e armazenamento. Grãos superiores, se não são bem trabalhados ao longo de todo esse caminho, perdem sua qualidade. Cafés mais baixos poderão ter sua pontuação elevada a partir da fermentação, mas milagres não acontecem. Não se tornará um café excelente.

A adoção de diferentes métodos de fermentação por parte de produtores permite, se conduzidos de maneira adequada, a obtenção de um maior portfólio de produtos do que os convencionalmente oferecidos ao mercado. “Em todas as etapas do processo, porém, o controle de qualidade é a principal ferramenta para avaliação e tomada de decisões”, avisa o especialista da Capricornio Coffees.

A classificação física e sensorial do produto ao longo do seu ciclo de produção é que irá orientar o produtor se suas expectativas em termos de diferenciação do produto serão ou não atendidas de acordo com o planejamento previamente realizado, possibilitando entender possíveis pontos de melhoria e fazer ajustes necessários de maneira proativa. “É preciso separar melhoria contínua de processo de tentativa e erro, assim como é preciso separar consistência de sorte”, diz Rodrigues.

A dedicação de Gabriel Nunes à melhoria dos seus cafés, adotando a fermentação, novas práticas, formação de mão de obra etc, foi recompensada recentemente, quando venceu um concurso de qualidade e vendeu o lote de seu café fermentado por R$ 55 mil a saca. “O retorno financeiro veio com esse lote premiado. Estamos trabalhando para abrir mercado, inclusive no exterior, e a fermentação é um caminho para potencializar as características do café e produzir com uma qualidade ainda melhor. Mas é preciso cuidar de todo o processo. Também não adianta só falar que tem café, é preciso ser consistente na entrega e mantê-la”, conclui.

Edgard Bressani, diretor da Capricornio Coffees e especialista em café, faz questão de lembrar que os produtores interessados em adotar a fermentação devem buscar apoio técnico. “O assunto merece muita atenção. Levedura não é barata (no caso de adotar as compradas e não as presentes na própria planta, como fez Gabriel Nunes). Então é preciso saber o que está fazendo para não acabar piorando a qualidade do café. Se não for para melhorar, não vale a pena, porque eleva o custo de produção do lote. Por isso, é preciso saber o que está fazendo e buscando”.

No que se refere à demanda, há alguns anos a resposta seria mais óbvia: o destino desse café seria o mercado externo. Mas o mercado brasileiro, segundo maior consumidor do mundo, está passando por uma transformação e a qualidade vem sendo um dos aspectos exigidos por um consumidor mais informado a respeito do café. “O mercado interno está crescendo a taxas relativas bastante elevadas e o mercado nacional de cafés especiais está aquecido em buscas de produtos diferenciados com qualidade reconhecidamente mais elevada”, destaca Luis Roberto Saldanha Rodrigues.

A nova realidade do setor de cafés especiais faz com que o sabor passe a ser o “Rei”, abrindo caminho para que experimentações sejam realizadas por todos os segmentos. Nesse sentido, falar de técnicas que permitam também aos produtores alterar os perfis mais convencionais de cafés já reconhecidos pelo mercado passa a ter grande relevância, conclui Rodrigues.

Via seca e via úmida

Há diferenças genéricas que afetam os atributos sensoriais dos cafés processados “via úmida” ou “via seca”, ambas requeridas por diferentes segmentos do mercado: os primeiros apresentam sabor mais suave, com menos corpo e elevada acidez, enquanto que os “arábicas” naturais possuem mais corpo e adstringência e menor acidez. “Originam, portanto, bebidas com diferentes características, mas que, quando bem preparadas, podem apresentar qualidade igualmente superior”, explica o especialista Luis Roberto Saldanha Rodrigues, da Capricornio Coffees.

Para entender o uso de processos de fermentação induzida na produção de cafés, precisamos olhar para o caminho percorrido pela produção e o consumo até o presente momento.

Quando do início da produção comercial de café arábica, saindo da Etiópia até chegar ao Yêmen, até próximo de 1890, a maioria dos cafés produzidos eram processados pela via natural ou seca com a casca, uma vez que o ambiente de produção de grande deficiência hídrica e baixa umidade relativa do ar permitia esse tipo de processamento e secagem.

A migração para regiões mais úmidas e frias como Américas do Sul e Central junto com o aumento da demanda no consumo de café arábica após 1890 esbarrou na dificuldade em utilizar a via natural de processamento e secagem por conta das condições ambientais – temperaturas menores e umidade mais alta – no momento da colheita. Por isso, surgiu a necessidade do descascamento das cerejas e a presença da mucilagem passou, então, a ser um gargalo para secagem dos cafés descascados.

Para resolver o problema da dificuldade de secagem das cerejas com mucilagem foram adotadas técnicas de remoção mecânica da mucilagem (utilização de desmuciladores) ou de remoção biológica (com ou sem utilização de água em “tanques de fermentação”). Por conta das condições climáticas, a via úmida é bastante utilizada na Colômbia e América Central.

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